sexta-feira, 19 de março de 2010

UM QUASE ALÍVIO

UM QUASE ALÍVIO - parte 1 -
Não acreditava em deus, mas respondia “bença, mãe” e “bença, pai” toda vez que um de seus progenitores lhe atiravam um “deus te abençoe, meu filho”. Era um acordo hipócrita, mas de boas intenções. Ele sabia – já que muitos anos antes havia declarado aos que da casa quisessem ouvir e em termos bastante explícitos sua descrença em deus – que gostavam de ouvir dele esse pouco de liturgia.

UM QUASE ALÍVIO - parte 2 -
Eles, cientes que eram da realidade, alimentavam a esperança de que a repetição das palavras de alguma maneira o fizesse acreditar em sua crença.

UM QUASE ALÍVIO - parte 3 -
Se perguntava quando e se seus pais finalmente notariam que pedia a benção a eles, boas pessoas que amava e que bem ou mal lhe criaram, e não ao deus das crenças que alimentavam.

UM QUASE ALÍVIO - parte 4 -
Não acreditava em jogos. Mas, passando em frente a uma lotérica de pouca fila e com tempo e trocados no bolso, jogava. Raramente conferia o resultado. No entanto, quando as circunstâncias convenientes se apresentavam, jogava de novo.

UM QUASE ALÍVIO - parte 5 -
Não acreditava no ser humano enquanto animal social. Os hábitos e maneiras lhe pareciam forçados, pouco funcionais. Pior, auto-destrutivos. Anuladores, conflitantes pela própria dinâmica. Aceitava o cotidiano, do qual assimilava certo conforto e com o qual tinha uma relação bastante tranqüila, por fácil.

UM QUASE ALÍVIO - parte 6 -
Porém, descrente que era, especulava a remota vontade de que a possibilidade da existência de alguém como ele fosse real. Alguém que, como ele, possuísse a plena consciência da inexistência e impossibilidade de tudo, e nas quais não se pode acreditar, portanto.

UM QUASE ALÍVIO - parte 7 -
Se encontrasse tal pessoa, confidenciariam. Se identificariam. Comungariam. Acreditariam que o outro sabe que não é possível acreditar em algo. Seriam iguais na crença da impossibilidade de se crer em qualquer coisa além do nada absoluto.

UM QUASE ALÍVIO - parte 8 -
Tal encontro insinuou-se muitas vezes, e sempre foram apenas possibilidades. Como sempre soube, tudo resultou em nada. Foi então que decidiu não crer que tal evento fosse possível.

UM QUASE ALÍVIO - parte 9 -
Nesse dia impossível, encontraria alguém que, como ele, descrê de tudo. E ele acreditaria, descrente que é e sabedor de que não se pode crer em nada. Então se alertaria para a impossibilidade de tal fato.

UM QUASE ALÍVIO - parte 10 -
Mataria, pois, ou daria fim a si mesmo. Não poderia conviver com o fato de acreditar que alguém acredita descrer de tudo, como ele. Alguém estaria mentindo, e sabendo que mentia, acreditaria em si e, nisso, não poderia acreditar.

UM QUASE ALÍVIO - parte 11 -
O celular apitou em seu bolso, tirando-o de todos os devaneios que alimentou desde que sentou ali, no banco sombreado da praça na qual descansava.

UM QUASE ALÍVIO - parte 12 -
Olhou para o aparelho, com a mensagem selecionada. Abriu, leu. Era quase o que pensara que seria.

UM QUASE ALÍVIO - parte 13 -
Esticou-se, e observou a praça. Reparou os pombos que ciscavam por ali, e lembrou que detestava pombos. Viu um mendigo falando sozinho e um policial barrigudo tentando acender um cigarro com fósforos. Achou graça da praça.

UM QUASE ALÍVIO - parte 14 – Final -
Com um isqueiro do qual não lembrava, acendeu o penúltimo cigarro. Triste, lamentou sinceramente ter ainda acreditado e partiu.

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